Tá bom, é a última vez que falo de Avatar, prometo.
Mas eu estava encafifado: Eu e a Dê saímos do filme mesmerizados com a técnica mas, também, com o conteúdo, a mensagem, simples e honesta em nossa opinião. Imaginamos que a direita americana iria detestar o filme (na verdade, todas as direitas), mas eu fiquei espantado com a quantidade de críticas ao filme, de como ele era "vazio", "raso", essas coisas.
Bão, n'O Globo de hoje, o Arnaldo Bloch publicou uma crítica que achei muito interessante, e que bate muito com a nossa opinião, também. Então, taí. E juro que não volto mais a esse assunto.
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Diálogo inusitado na saída de uma sessão de cinema em Botafogo: o maior sucesso de bilheteria dos últimos anos é um épico banal ou um novo marco ético?
Por Arnaldo Bloch
Ao final da sessão de 17h30m de “Avatar”, versão dublada, na última sexta-feira, sala 4 do Arteplex Botafogo (à qual este repórter a serviço da Página Logo esteve presente após gramar quase uma semana inteira para conseguir ingresso), o público aplaudiu entusiasticamente, invadindo os créditos com um tipo de euforia que, nos dias de hoje, em se tratando de cinema, só acontece, se for o caso, em préestreias, noites de convidados, festivais ou cabines de imprensa.
- Ora, isso só aconteceu porque a projeção era em 3-D! - explicou, na saída, um rapaz, à sua namorada, que estranhara tamanho oba-oba numa sessão ordinária, para um público comum.
Absolutamente mesmerizado pelo filme apesar de ter ido preparado para detestá-lo, o repórter-Logo, sempre pronto para provocar uma confusão, interpelou o casal:
- Não é nada disso. Os aplausos são para o conteúdo, que a forma e a projeção só valorizam.
- Que conteúdo? - reagiu o rapaz. - Trata-se de um filme raso, superficial, como tudo o que se faz hoje na América.
- Você pode até querer que seja isso, eu mesmo queria que fosse isso, mas sinto informar que não é. O público, mesmo sem saber, aplaudiu a convergência entre uma bela aventura épica e o advento, em nossas vidas, de uma nova ética.
- Naturalmente você fumou um baseado.
- Não fumei não, e nem precisava: nesse sentido, o 3-D, sim, deu uma onda semelhante.
Mas a mensagem do filme é cristalina: na Terra condenada que se anuncia para um futuro próximo, com a natureza devastada e as ideologias mortas, o anarcocapitalismo a imperar e as pessoas vivendo exclusivamente no ambiente digital, é justamente nesse ambiente, em radical paradoxo, que se projetará a salvação. O messias, claro, como já sugeria “Matrix” (mas de um modo um tanto obscurantista) terá a identidade de um avatar.
A esta altura, a namorada, que não tem qualquer interesse em entrar na conversa, anuncia que vai fazer um “pips”.
Casualmente, eu e meu antagonista, que guarda uma expressão de espanto jocoso ante meu arroubo, caminhamos na direção do café.
- Cara, você enlouqueceu, e digo mais: está completamente colonizado.
- Colonizado? A direita americana está furiosa com o filme! O que, aliás, é uma bobagem: “Avatar” não critica o imperialismo ianque. Seu foco está numa aliança difusa entre capital e o poder bélico, aliança essa que data de milênios. Assim como a corporação e os soldados mercenários que tentam, à força, expropriar os aborígines do planeta Pandora de riquezas minerais que os próprios índios desconhecem, os povos, no decorrer de toda nossa História, trataram de usurpar, à força, as terras e as riquezas de outros povos. Assim os espanhóis dizimaram dezenas de milhões de índios. Assim conhecimentos preciosos de povos antigos se consumiram em chamas. Assim a relação do homem com seu habitat foi perdendo sua conexão original e sendo substituída por uma razão utilitária que, hoje, se revela falível. Não à toa, a tal da nova ética começa, pragmaticamente, a se impor, muito embora a práxis esteja para lá de atrasada.
- Quer dizer que você viu tudo isso em “Avatar” e acha que os pais e as criancinhas presentes, que aplaudiram no final, viram também.
- Viram. Não com essas palavras. Não com essa racionalização. Mas sentiram. Conectaram-se com a árvore das almas dos aborígines, conectaram-se com sua ancestralidade, não num sentido sobrenatural, mas cognitivo, arquetípico, de um sentimento que está à flor da pele dos nossos dias: estamos nos afastando de nós mesmos, perdidos em pequenos monitores manuais e tentando projetar, na virtualidade, algo de nós que ainda faça sentido: nosso avatar tem duas caras, uma que aponta para nossa perdição, nossa rendição ao caos; outra que aponta para nossa salvação, que acontecerá no dia em que os elementos que outrora se consideraram ocultos e mesmo as “divindades” da floresta revelarem-se parte de um design inteligente: a natureza tem as suas sinapses, a sua lógica dentro do caos, e a convergência desse “pensamento” da natureza com a tecnologia irá projetar a saída que estamos procurando para a prisão que construímos para nós mesmos.
- Rapaz, estou espantado. Acho que você deveria fazer um filme sobre isso.
- Ride, paglacci!
- Mas me diga aí: como é que eu não vi nada isso? Como é que eu não senti nada disso? Como é que eu não aplaudi, se sou instruído, lido, educado, intelectualizado?
- Já te disse: você veio aqui imbuído de uma verdade prévia, a de que era mais uma merda americana superficial. Em geral, é mesmo. Cinema hoje é quase sempre isso, inclusive o europeu, o asiático, o brasileiro: uma merda atrás da outra. Arte, conteúdo e simplicidade, em cinema, num filme só, é exceção. “Avatar” é uma delas.
- Então tá. Quem sou eu para discutir? Vai ver sou seu avatar do mal.
- Acredite: esse filme é do bem. Você já foi à Amazônia? Já esteve no meio de índios? Já tomou o chá dos índios?
- Eureka! Sabia que tinha bagulho no meio!
- Confesso que sou ligado numa mentalidade indígena. Não interessa se as suas divindades existem ou não: eles creem na natureza, como, aliás, também as culturas africanas, e essa reverência é salutar, e o conhecimento que eles tentam preservar tem um valor que só agora começa a ser reconhecido. Não são só os índios, mas qualquer grupamento cujos valores são destruídos. Se lembra da tal da lenda esquecida de que quando o mar recua ele depois volta com violência? Se ela tivesse se disseminado nas escolas do sudeste asiático, muita gente em vez de ficar imóvel, pasma, quando o mar recuou, teria se salvado, e não apenas aquelas da tal aldeia isolada onde este conhecimento permanecia. A tal da corrente sináptica da árvore das almas dos aborígines do filme é exatamente isso: a informação compartilhada entre as culturas, e não sua destruição em troca de dinheiro e poder, produz uma cadeia de conhecimento que leva a uma evolução em progressão geométrica. Essa evolução vem sendo refreada pelas contradições da natureza humana. Curiosamente, a palavra da moda, na internet, é compartilhar! Tou te dizendo, rapaz, a salvação virá daí, quando as sociedades tribais que se multipolarizam na rede se organizarem, como na revolta que acontece no planeta Pandora. A revolução final nascerá da canalização da informação e do conhecimento perdidos para a harmonia ecossocial.
- Tá bom, tá bom, me convenceu.
- Que isso, eu não estou aqui para explicar, mas para confundir!
Neste momento, a namorada voltou de seu “pips”. Sem nos despedirmos, eu e meu relutante avatar nos afastamos.
Por Arnaldo Bloch
Ao final da sessão de 17h30m de “Avatar”, versão dublada, na última sexta-feira, sala 4 do Arteplex Botafogo (à qual este repórter a serviço da Página Logo esteve presente após gramar quase uma semana inteira para conseguir ingresso), o público aplaudiu entusiasticamente, invadindo os créditos com um tipo de euforia que, nos dias de hoje, em se tratando de cinema, só acontece, se for o caso, em préestreias, noites de convidados, festivais ou cabines de imprensa.
- Ora, isso só aconteceu porque a projeção era em 3-D! - explicou, na saída, um rapaz, à sua namorada, que estranhara tamanho oba-oba numa sessão ordinária, para um público comum.
Absolutamente mesmerizado pelo filme apesar de ter ido preparado para detestá-lo, o repórter-Logo, sempre pronto para provocar uma confusão, interpelou o casal:
- Não é nada disso. Os aplausos são para o conteúdo, que a forma e a projeção só valorizam.
- Que conteúdo? - reagiu o rapaz. - Trata-se de um filme raso, superficial, como tudo o que se faz hoje na América.
- Você pode até querer que seja isso, eu mesmo queria que fosse isso, mas sinto informar que não é. O público, mesmo sem saber, aplaudiu a convergência entre uma bela aventura épica e o advento, em nossas vidas, de uma nova ética.
- Naturalmente você fumou um baseado.
- Não fumei não, e nem precisava: nesse sentido, o 3-D, sim, deu uma onda semelhante.
Mas a mensagem do filme é cristalina: na Terra condenada que se anuncia para um futuro próximo, com a natureza devastada e as ideologias mortas, o anarcocapitalismo a imperar e as pessoas vivendo exclusivamente no ambiente digital, é justamente nesse ambiente, em radical paradoxo, que se projetará a salvação. O messias, claro, como já sugeria “Matrix” (mas de um modo um tanto obscurantista) terá a identidade de um avatar.
A esta altura, a namorada, que não tem qualquer interesse em entrar na conversa, anuncia que vai fazer um “pips”.
Casualmente, eu e meu antagonista, que guarda uma expressão de espanto jocoso ante meu arroubo, caminhamos na direção do café.
- Cara, você enlouqueceu, e digo mais: está completamente colonizado.
- Colonizado? A direita americana está furiosa com o filme! O que, aliás, é uma bobagem: “Avatar” não critica o imperialismo ianque. Seu foco está numa aliança difusa entre capital e o poder bélico, aliança essa que data de milênios. Assim como a corporação e os soldados mercenários que tentam, à força, expropriar os aborígines do planeta Pandora de riquezas minerais que os próprios índios desconhecem, os povos, no decorrer de toda nossa História, trataram de usurpar, à força, as terras e as riquezas de outros povos. Assim os espanhóis dizimaram dezenas de milhões de índios. Assim conhecimentos preciosos de povos antigos se consumiram em chamas. Assim a relação do homem com seu habitat foi perdendo sua conexão original e sendo substituída por uma razão utilitária que, hoje, se revela falível. Não à toa, a tal da nova ética começa, pragmaticamente, a se impor, muito embora a práxis esteja para lá de atrasada.
- Quer dizer que você viu tudo isso em “Avatar” e acha que os pais e as criancinhas presentes, que aplaudiram no final, viram também.
- Viram. Não com essas palavras. Não com essa racionalização. Mas sentiram. Conectaram-se com a árvore das almas dos aborígines, conectaram-se com sua ancestralidade, não num sentido sobrenatural, mas cognitivo, arquetípico, de um sentimento que está à flor da pele dos nossos dias: estamos nos afastando de nós mesmos, perdidos em pequenos monitores manuais e tentando projetar, na virtualidade, algo de nós que ainda faça sentido: nosso avatar tem duas caras, uma que aponta para nossa perdição, nossa rendição ao caos; outra que aponta para nossa salvação, que acontecerá no dia em que os elementos que outrora se consideraram ocultos e mesmo as “divindades” da floresta revelarem-se parte de um design inteligente: a natureza tem as suas sinapses, a sua lógica dentro do caos, e a convergência desse “pensamento” da natureza com a tecnologia irá projetar a saída que estamos procurando para a prisão que construímos para nós mesmos.
- Rapaz, estou espantado. Acho que você deveria fazer um filme sobre isso.
- Ride, paglacci!
- Mas me diga aí: como é que eu não vi nada isso? Como é que eu não senti nada disso? Como é que eu não aplaudi, se sou instruído, lido, educado, intelectualizado?
- Já te disse: você veio aqui imbuído de uma verdade prévia, a de que era mais uma merda americana superficial. Em geral, é mesmo. Cinema hoje é quase sempre isso, inclusive o europeu, o asiático, o brasileiro: uma merda atrás da outra. Arte, conteúdo e simplicidade, em cinema, num filme só, é exceção. “Avatar” é uma delas.
- Então tá. Quem sou eu para discutir? Vai ver sou seu avatar do mal.
- Acredite: esse filme é do bem. Você já foi à Amazônia? Já esteve no meio de índios? Já tomou o chá dos índios?
- Eureka! Sabia que tinha bagulho no meio!
- Confesso que sou ligado numa mentalidade indígena. Não interessa se as suas divindades existem ou não: eles creem na natureza, como, aliás, também as culturas africanas, e essa reverência é salutar, e o conhecimento que eles tentam preservar tem um valor que só agora começa a ser reconhecido. Não são só os índios, mas qualquer grupamento cujos valores são destruídos. Se lembra da tal da lenda esquecida de que quando o mar recua ele depois volta com violência? Se ela tivesse se disseminado nas escolas do sudeste asiático, muita gente em vez de ficar imóvel, pasma, quando o mar recuou, teria se salvado, e não apenas aquelas da tal aldeia isolada onde este conhecimento permanecia. A tal da corrente sináptica da árvore das almas dos aborígines do filme é exatamente isso: a informação compartilhada entre as culturas, e não sua destruição em troca de dinheiro e poder, produz uma cadeia de conhecimento que leva a uma evolução em progressão geométrica. Essa evolução vem sendo refreada pelas contradições da natureza humana. Curiosamente, a palavra da moda, na internet, é compartilhar! Tou te dizendo, rapaz, a salvação virá daí, quando as sociedades tribais que se multipolarizam na rede se organizarem, como na revolta que acontece no planeta Pandora. A revolução final nascerá da canalização da informação e do conhecimento perdidos para a harmonia ecossocial.
- Tá bom, tá bom, me convenceu.
- Que isso, eu não estou aqui para explicar, mas para confundir!
Neste momento, a namorada voltou de seu “pips”. Sem nos despedirmos, eu e meu relutante avatar nos afastamos.
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on 10 de jan. de 2010
at domingo, janeiro 10, 2010
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